Amor Obscuro - Parte V (Final)

A paixão me consumira e ousei pagar qualquer preço.
Porém, aos demônios não se paga somente com o sangue, com a alma, com a carne. Aos demônios, paga-se com a maldição eterna. O que seria mais sublime que tê-la comigo? Um dia e uma noite de puro deleite. Um dia e uma noite como um príncipe. Entanto, o demônio me enganara. Não percebi o logro imediatamente. Descobri naquela noite quando, enquanto na casa de Ana pranteavam seu cadáver de princesa adormecida, recolhi-me ao universo dos sonhos ainda embargado em deleite.
Crendo que a alma de Ana estivesse na boneca adormeci em paz e sonhei. Estava em meu quarto, dormia, um sorriso repousava em meus lábios. Ela não era minha, era dele, somente dele.
Sorria nos meus sonhos, a consciência livre de qualquer pena, suspirando ainda pela posse, quando um vulto se aproximou do meu corpo desprotegido. Era ela, a minha Ana. Mais uma vez, como tantas vezes a literatura ensinara-me: a criatura voltava-se contra o criador! Pressenti a sombra sobre meu corpo, um frio gelou-me e despertei. Era tarde. Suas unhas cravaram-se em meu pescoço, e gritei. Os olhos vermelhos zombaram da angústia, zombaram da dor que ceifava-me a vida em um beijo gélido.
Morto! Estava morto!
Eis então, como minha consciência conheceu as sombras que chamam morte. Aqui, no escuro lento e pegajoso, onde somos todos prisioneiros, posso ouvi-lo gargalhando, enquanto Ana grita.
Posso vê-la ainda, a Outra, a minha perfeita criação. Os anos passam e sua beleza somente aumenta. Seduz e aprisiona. Assim, durante as noites, ceifa vidas e somos apenas peças em sua monstruosa coleção.
Não fora a Ana que o sangue derramado trouxera-me. Naquela noite insana, libertei o mais cruel dos demônios, dando-lhe a face angelical da mulher que ousei amar. Ana e eu morremos, o escuro renasceu.    
Por séculos a boneca que nasceu das minhas mãos hediondas percorreu e ainda percorre o mundo, ceifando vidas e fascinando pela sublime beleza. seus olhos carregam ainda o fascínio da dor de Ana. Aqui, nada valem meus lamentos, aprendi a calar-me. Ah, minha amada Ana, estamos juntos nestes corredores de dor, de sombras, mas não ouso chamá-la. No escuro não posso ser visto. No escuro, monstros iguais a mim não podem me encontrar. A covardia sufoca meus sentidos. No escuro, escuto seus murmúrios, lamentos, choro e a lembrança de sua face suaviza minha dor.
O demônio espreita-me e sei que meu castigo contempla a eternidade nestes corredores sombrios: vagar infinitamente nos labirintos de escuridão, a alma ferida por um amor obscuro.

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