A Voz Sem Som

I

Em meio à névoa, uma imagem, impressionista, dissolúvel nos gases que a envolvem; uma imagem de mulher. Dos delicados contornos percebo apenas as tênues formas, que se movem, aproximam-se, afastam-se, iludem meu olhar. Talvez uma divindade, talvez um delírio, mas certamente um corpo sem face.

Mergulhado no líquido viscoso da transpiração, desperto na polução noturna. A imagem some. Um sonho! Levanto-me: o banho, a água morna, a toalha felpuda, e sequer uma lembrança — um corpo sem rosto!

II

Convulsões impelem meu corpo contra a cama, e o corpo da mulher pulsa estranhamente no infinito do espaço do inconsciente. Mas o brilho muito intenso faz com que suma a névoa, o pulsar, a imagem. Meu corpo jaz apenas estático sobre o colchão.

O caótico quadro embrulhado em gases e angústias é agora substituído por uma arcádia. Vejo um enorme gramado plano, verde, e um profundo céu azul, sem nuvens, e só! Ao longe percebo um homem que caminha, lento, sonambúlico, sobre o verde prado. Vislumbro-o de costas, mas reconheço-me em sua silhueta. Caminha em direção ao ponto em que se encontram o solo e o céu, e onde desaparece toda e qualquer possibilidade de referência. É como se procurasse o suicídio no imenso abismo da paz.

Minha intenção é gritar-lhe, informá-lo da minha vontade de ficar, de sentir ainda por muitos anos a umidade da grama verde que se estende sob seus (meus) pés, mas não consigo. Tudo o que possuo é o terceiro olho que observa o espaço da subjetividade mais profunda, o espaço totalmente desprovido das noções de tempo, o espaço desprovido da própria noção de espaço. Tudo o que vislumbro é possível reduzir à noção de infinitude. Estou um mero espectador de mim mesmo inatingível.

E continua caminhando, a grama gira sob seus (meus) pés e parece não terminar mais. A cada passo uma cor transpassa o céu azul, e a cada cor que passa no céu, levanta a cabeça. Mas não pára, seu (meu) destino é o ponto no infinito, na ausência de matéria, forma e cor. Seu (meu) destino é o abismo do vazio, onde certamente encontrará o tombo eterno. Mas não pára, e não o alcança!

Do vazio sobe agora a voz sem som. É estranho, naturalmente, mas ele (eu) pode escutá-la. Uma voz sem som que fala à mente do eu que vaga no espaço da minha própria mente. Uma voz, quase um apelo, uma presença naquele imenso vazio; e a segue, sim, segue-a!

Posso perceber agora que o abismo não existe, que da grama caminha sobre o nada. Não caiu, não cai, apenas vai! E segue a voz sem som. O que eu via, um corpo, já não mais existe, faz parte da imatéria, e já não vejo mais, apenas sinto, sinto o eu que vai, não mais caminha, e a voz sem som.

Abro os olhos, calmo. Observo o teto, branco, e o dia lá fora amanhece. Vago, leve, ponho-me de pé e rumo para o banho: água, sabonete e a toalha felpuda. De nada me lembro, sinto apenas um corpo vazio, a falta de algo que nunca tive.

III

Agora nada vejo, nada escuto, pareço estar no interior de uma hermética bolha de sabão que flutua sobre o nada. O ser (eu) que via, que acompanhava, alheio a minha vontade, vivo! Pertenço agora a sua natureza: sou eu dentro de mim mesmo. Difícil explicar, mas faço agora parte daquilo que eu via, e sou eu em toda a minha essência: sem corpo, sem voz, sem vontade, apenas eu. A essência mais profunda: ser!

E novamente a voz sem som me chama, nada penso, apenas sinto. E me desloco no espaço inexistente e sem sentido. A voz ... a voz... a voz... Sinto-a se aproximando, mas pareço mudar de direção, alheiamente a minha vontade — não tenho vontades! Mas a voz sem som continua me chamando, insistentemente clama por minha presença. No plano da total inexistência, porém da profunda essência, tudo o que percebo sou eu e a voz.

Levanto, é tarde, tomo um banho, água quente, toalha felpuda. Fecho os olhos; quando os abro ela está lá, olha para mim, e some.

IV

A voz sem som, a voz sem nome, sem palavras. Tão somente uma voz. E eu em minha maior profundidade modifico o meu rumo e vou ao encontro do que me chama. E encontro-a.

Acordo delirando, febril, o guarda-roupa parece se inclinar sobre mim. É manhã e o despertador toca incessantemente. Desligo-o e me deparo com o rosto do vizinho na janela. Diz-me que estava preocupado, acordara durante a madrugada com o som dos meus gritos, e agora, com o barulho irritante do despertador, pensou que eu estivesse morto e veio verificar.

Tranqüilizo-o e me convenço da necessidade de colocar cortinas nas janelas.

Dispo-me, banho, água morna, sabonete, toalha felpuda... Algo não está completo, e sou eu. Falta-me alguma coisa, mas não consigo descobrir o que é. Talvez seja... o telefone! O telefone está tocando, preciso atender.

- Sim?

... um engano, mas juro que conheço aquele suspiro!



V

Uma explosão! - foi tudo o que vi e senti. Levanto agora a minha cabeça, meu corpo está de volta, e distingo no alto as formas de uma mulher (ela novamente), mas não encontro seu rosto. O rosto meu Deus! E no momento em que clamo por sua face, esvai-se num suspiro.

... no banco do táxi, desperto. O motorista me olha desconfiado. Conta-me que estive sonhando. Enquanto fala, sinto duas mãos me acariciando a nuca e o pescoço. Viro-me e encontro apenas um banco vazio. Começo a transpirar...

... o corpo me envolve em sua essência, começo a dissipar-me. Sussurros sem som me comunicam da junção dos espíritos. É um corpo de mulher, é um espírito de mulher, mas sem rosto...

... no hospital, a roupa branca me veste, o piso liso e limpo reflete minha fisionomia anêmica, e a enfermeira me observa assustada.

- O taxista te trouxe, estavas delirando, com febre.

- Obrigado!

- O doutor te consultou enquanto deliravas, estavas gritando por um rosto, mas disse que tudo o que tu tens é estafa. Disse que assim que quiseres podes ir para casa. Se houver a necessidade ele te dá um atestado e ficas de repouso por alguns dias.

VI

A névoa abaixa. Vejo agora um rosto e um corpo. Mas agora que ela se materializa, agora que distingo novamente as formas, não posso tocá-la, pois distancia-se com os braços estendidos na minha direção, puxada por uma força distante. Sua voz sem som é agora perfeitamente audível, posso compreender o que diz: jamais ... jamais ... jamais...

Acordo em casa, deitado no sofá, a campainha tocando. Levanto-me e rumo em direção à porta. Uma sensação estranha cruza meu corpo. Ainda sinto falta de algo, não sei o que é, mas sei que vou descobrir. E só abrir a porta... e a campainha continua tocando.

Ponho a minha mão na maçaneta fria de metal, giro-a, a porta se abre ela e está aqui: a proprietária do corpo sem rosto, da voz sem som!

- Eu sabia que ia te encontrar — diz e me abraça.

Sinto em seu peito o seu coração, que pulsa, está viva! Uma incontrolável vontade de chorar toma conta de mim. Toco seus ombros, levanto seu rosto, como é lindo! Suas mãos sobem aos meus lábios, toca-os com os dedos delicados e me proíbe de falar. Aproxima sua boca da minha, beija-me, e neste singelo ato me permite conhecer todo o seu ser, a voz dos meus sonhos.


VII

Acordo assustado. A cama molhada pelo suor de muitas noites de sono e sonhos. Está vazia! O teto, a luz que entra pelo vidro da janela sem cortina. Sinto que me falta algo, algo com o qual sonhei, mas não sei o que é, não me lembro daquilo que sonhei.

Acordo, abro os olhos mas não me mexo. Pareço estar em estado de êxtase. Todo o meu corpo leve. Lentamente me descubro, esfrego meus olhos, verifico as horas no relógio e me certifico que estou de volta, posso medir o tempo e o espaço e compreendo que preciso sair para trabalhar. O banho, a água que me massageia, a toalha felpuda, mas algo me falta, tenho certeza, mas não sei o que é.

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