O Autor

Ouvir o som da música, desta sinfonia de um Mozart mítico, é conhecer o infinito! A sinfonia repetindo-se incessantemente, desnudando-se para o laser que a lê; e o corpo em repouso, ora oprimido, ora liberto na "insustentável leveza do ser", tem seu íntimo embalado nas notas escritas pela perícia de incógnitos músicos que inscrevem seus textos no ar. A música, desalentado espírito repousado no sofá, é ópio para a ausência dos lábios que me despertaram (e me deixaram também!), para a lembrança do corpo quente que ainda sinto em mim, tocando-me, cingindo-me. A música é este corpo que procuro: e me deixo enlaçar. Um manto, um oceano, é "Nut" que me abraça, mortal abraço do qual não me desvencilho mais, e me quedo, estático, aos olhos dos que sempre me viram, para nascer, novo - apesar de mesmo - , incorpóreo, em essência.

XX

Na tela os traços de um olhar refletido na paisagem. Mãos leves manejam habilmente o duro pincel. É uma deusa concedendo a vida. Imóvel, observa a cena que pintou, está nela, é a deusa criadora, o "verbo", templos e oferendas lhe serão dedicados, preces lhe serão rogadas!

Trêmula de emoção (erótica é a visão que se lhe apresenta das criaturas que procriam sofregamente diante dos seus olhos), despe-se vagarosamente. A mão que ainda a pouco empunhava o pincel, agora desliza sobre a sua pele macia: contorna os seios, o ventre e se perde no interior das coxas. A excitação a faz ir ao encontro da tela recém pintada, do mundo recém criado, e se encosta nela. A tinta fresca imprime-se ao seu corpo, e é neste solo palpitante e quente que copulam agora as criaturas. As mãos freneticamente continuam a se mover pelo corpo, misturando as tintas, preenchendo de cor cada canto seu, e as criaturas a penetram, invadem seu ventre, o ventre da deusa que veneram, e ali arquitetam os planos de uma nova civilização. A deusa faz de si sua própria obra, a mais perfeita, a mais sincera, e refeita do êxtase criador, tendo as coxas umedecidas pelo gozo, mistura às tintas que a recobrem o líquido do seu sexo. Descansada, expõe-se na janela do seu apartamento, segundo andar da principal avenida da cidade, e permite aos transeuntes contemplar o auge da sua criação: ela mesma mergulhada em sua obra e sua obra mergulhada em si, fundidas em um mesmo ser, da cópula consigo mesmo.

XX

A música é todo meu mundo, não mais a sinfonia de Mozart, não mais qualquer música já composta. O som que envolve minha essência não é passível de composição, não há notas que possam registrá-la em pentagramas, é a música em si mesma, assim como eu, em mim mesmo, indescritível, sem formas. A música decompõe-se numa explosão de cores, da qual faço parte, e emana este calor que é único, impossível de ser medido pelos termômetros que inventamos. Apenas o turbilhão onde me sinto pleno, e percebo que não sou o único, há muitos aqui, estão em mim e estou neles, e somos apenas vontades, vontades de sermos únicos, e somos, não únicos, mas Único, uma só vontade criadora.




XX

Estou neste ventre, fértil solo materno, no interior da caverna, e vejo as sombras projetadas na parede úmida, tal qual descrevera Platão. Eu mesmo não deixo de ser uma delas, é assim que me vêem e é assim que me vejo, a projeção de um outro eu, desconhecido eu, que me rege.

Apesar de sombra, ouço incessantemente a música, que brota do ventre. A deusa dança novamente, sempre mais excitada, e se esfrega às telas que pinta, inscrevendo à paisagem os traços do seu sêmen. E a fantasia se move, concebe-se, procura a compreensão de si.

Da rua, olhos desocupados a contemplam, nua, manchada de tinta, mergulhada em seu êxtase. Homens sobem à sacada e se penduram na janela, enquanto esposas mal amadas agarram-se aos telefones públicos para denunciar o que consideram "uma vergonha". "É espaço privado, apartamento particular, segundo andar, não há lei que a impeça de rolar nua sobre seus quadros" - responde o paciente delegado. Matéria de capa dos jornais, chamada na televisão, todos param para contemplar o inusitado espetáculo de uma pintora louca que inscreve aos seus quadros as marcas do seu corpo e o cheiro do seu gozo. Valorizados quadros, objetos de fantasia sexual, homens e mulheres dedicam-se a lambê-los em seus momentos de intimidade, e a denunciá-los como lixo imoral perante a sociedade. Mas a Deusa não se importa; mais, não compreende as críticas das quais é alvo, não consegue se lembrar de como suas pinturas foram manchadas, transformadas em obras abstratas. Ela própria só se enxerga como sombra, difusa imagem no espelho, que some lentamente. Pensa em se desesperar, "para onde vou?", "onde se escondeu a imagem que estava no espelho?" Permanece o corpo perante o espelho, nu, belo, gélido! A Deusa não está mais lá, convocada no mundo que criou, misturou-se as tintas mescladas em uma só cor, na tela que se inscreve nas paredes do seu útero, gélido útero em um corpo morto, ainda que divino, estirado no chão. Penetrou em si mesma, encontrou-se no seu interior, abandonou as sombras para ingressar na luz. É isto, transformou-se em luz, na luz que brota por entre as coxas de uma mulher lindíssima que foi encontrada morta perante um espelho. Acharam-na os homens que se penduravam na sacada para observá-la, como de costume, rolar eroticamente sobre seus quadros. Mas não rolava, não dançava, não pintava, apenas se punha deitada, e por entre as coxas uma luz, indefinida luz, perfumada luz. Não ousavam tocá-la, não ousavam removê-la, estava morta, era visível, não se movia, não respirava, mas no entanto era fonte de uma luz eterna, que não oscilava, não enfraquecia, sempre a mesma e constante. Sequer os legistas ousavam conspurcar tamanho mistério com seus instrumentos cirúrgicos, com suas patéticas luvas de látex, quedavam-se em observar o corpo, atraídos pela luz, por horas seguidas, como em transe hipnótico, sem encontrar respostas, sem encontrar perguntas, apenas diziam: "é uma luz"; e se punham a venerá-la...

XX.

Embalado por Mozart, procurando compreender-me, permito ao meu olhar vagar sobre a tela anônima. A profusão de cores que se projetam do quadro desnorteia-me, deixa-me tonto, mas ainda assim acompanho as formas de uma mulher lançada ao chão de um pequeno prédio. A janela está aberta, o corpo está nu, sujo de tinta, e por entre as coxas um enorme clarão. Há homens pendurados na sacada do prédio, olhos arregalados, expressão de espanto, e um médico reclina-se sobre o corpo estático, sem no entanto tocá-lo. Quem seria o pintor?

Levanto-me e chego mais perto da tela. A tinta sobre o ventre, sobre os alvos seios, forma paisagens, vales, prados, cidades. Há movimento, quase imperceptível, no abdômen, e uma pequena brisa move levemente os longos cabelos avermelhados. Sinto medo, quero afastar-me da pintura, mas não consigo. Mozart a minha volta, cada vez maior, mais alto, mais claro, e a pintura por todos os lados, para onde viro está a mulher, enigmática, corpórea, e a luz sempre presente por entre as coxas.

Olho para o alto, dois olhos enormes e arregalados obscurecem o céu, abaixo o solo claro e macio, epiderme, por onde experimento alguns passos. Tomo o caminho contrário aos dois montes distantes que vislumbro no horizonte, e rumo seguindo os sulcos de uma gota de tinta que escorreu lentamente. A claridade me obriga tatear com os olhos fechados. Caio! Rastejo no solo macio, o desejo de rastejar infinitamente, e um indiscritível prazer toma conta de mim. E Mozart constante, mais e mais alto, convulsiona-me, impele-me adiante, onde encontro o vale profundo, fonte de toda luz. O cheiro inconfundível do sexo penetra minhas narinas, e caminho pisando em vúlveo terreno. Estou mergulhado na modelo do quadro.

XX

Mozart cessou. Paira despótico o silêncio. O escritor abandona a caneta, arrasta a cadeira, levanta-se! Caminha em direção ao aparelho de som, retira o disco já ouvido, escolhe outro, MPB, introduz a nova escolha no leitor ótico e se volta para a mesa de trabalho. Um instante de dúvida o mantém parado, o olhar fixo sobre os papéis que se espalham sobre o tampo da mesa: retorna, não retorna. A caneta espera em repouso. Acordado pela voz de Toquinho – Aquarela – volta a movimentar-se. Senta-se cansado, quiçá desiludido. Seus olhos percorrem o manuscrito e, descontente, usa das mãos para transformá-los em papéis amassados, lançados ao lixo.

É Toquinho que o invade agora, e angustiado lança os olhos para o cesto de lixo. Está lá, amassada e transfigurada, a mulher que emana a luz, a sua luz. Tenta esquecer, escrever outra coisa, mas não consegue. Os papéis no cesto palpitam, têm cheiro, clamam por ele. A mulher não dorme, não morre! É tão somente luz, a luz que agora envolve o recinto, que o abraça no enlaço tépido de um sorriso carinhoso. Persegue a luz, desiste de resistir, e se entrega a perseguir a luz. É seu destino, está escrito, assim o quis o autor, e por isso ninguém consegue despertá-lo pela manhã. Debruçado sobre a mesa, seu corpo está frio!

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