Carícia

O peito dói, como sempre. Talvez o frio nesta noite e o vento que vem do mar. A Lua beijando a água, beijo salgado. Estes clichês! Tão difícil evitá-los. Mas o peito dói, pulmões ou coração? Tão novo, coração? “Os poetas sofrem dos pulmões pois respiram muita vida, e são tão parcos seus peitos!” – frase preferida do seu personagem. Este personagem que lhe toma o corpo, a alma, que lhe rouba a personalidade. A quem cumprimentam? A ele ou ao personagem? De quem são estes olhos? Estas mãos? Estas pernas? De quem é este sexo e esta língua? Ah... E o vento, o vento do mar, do sul, suspiro final do inverno. Logo, a primavera, as flores, a cerveja... e a solidão! Pois se sente tão só sempre, inda mais quando há calor. Sabe que no inverno as carências são maiores, os abraços mais necessários, a poesia mais quente. Esperará novamente o outono e o inverno, esperará... Sempre esperando, e as coisas acontecendo. Esperar de espera mesmo, não de esperança. Esperança é conhecer o que se espera e ele desconhece absolutamente tudo. Ele ou seu personagem? Mas esta dor no peito, esta dor no peito que lhe dificulta a fala, e como é bonita esta estrada! O retorno à cidade, o Atlântico à direita e a Lua no céu. Alva como o rosto claro da Carícia que lhe rouba os pensamentos. Esta Carícia terna que possuiu algumas vezes sobre sua cama. Esta Carícia cujas marcas das unhas ainda carrega tatuadas nas costas. Ah, este jogo de se esconder e de se mostrar, hoje liga, amanhã visita, depois acaba. Imolado, conhece o destino que se repete, sempre. Imolado! O dia seguinte e aquele par de olhos que flertam com os seus. Tem medo, mas aceita. Sempre aceitou. E depois a dor no peito.

“Linda, a Lua, não?” – corta o silêncio a amiga que dirige.

“Linda!” – responde. Queria dizer que é triste também, mas há beleza na tristeza. Acha linda uma composição que lhe arranca a dor. A lágrima é a dor diluída. Ah Pessoa! É este o mesmo mar que olhaste, com o mesmo sal, muito do qual, poetizaste, são lágrimas de Portugal, e outro tanto lágrimas africanas, e americanas e...  Há sempre tantas lágrimas e são tão áridos tantos e tantos rostos que por aí vagam sem porquê. Mas deixa, deixa estar este marulho, e esta luz, e este vento. Deixa estar os pescadores que dormem para acordar no meio da madrugada e pescar. A rodovia acesa, sempre acesa, com suas faixas amarelas, suas casas de lâmpadas vermelhas e as putas e michês. Dia desses faz a proposta, a amiga libidinosa aceita: “Vamos entrar?” “Sim, vamos entrar, e vamos fumar, e vamos beber, e vamos transar. E vamos matar esta melancolia, estes olhos lassos, e depois vamos embora, e nos teremos de volta, e você dirigirá, e eu olharei para fora, para além, para dentro, e serei o mesmo (ou um outro?), serei sempre ridiculamente o mesmo.”

Mas agora, Carícia, de olhos claros medrosos. A boca pequena. A voz embargada. Tão ansiosa por ser mulher! Respira Carícia, dominatriz, e ele sabe, masoquista que é, entrega-se, suicida-se. E ela suspira a paixão que inventou para si, plagiando assim Cazuza e seu “amor de liquidificador”. Que coisa horrível o sentimento de canalhice. Carícia, tão clara, tão medrosa, tão canalha! E ele prevê, prevê tudo, espera até. Mas que fazer? Que fazer? E, no entanto, o frio e a dor, pulmões tão plenos e tão cheios de vida e este peito tão pequeno! Os poetas deveriam ter peitos mastodônticos, mas não os têm. No entanto, estão aí, raridades, mas estão por aí! Claro, não se trata aqui de apontar aqueles que tão somente desejam sê-lo. Não se escolhe ser poeta, apenas se é, foge-se até da sina. Sina? Os sinos que nunca ouviu. Sua igreja não tinha sinos, pequena que era. Mas torre tinha, ah tinha, para aninhar passarinhos. Tinha também projeto de sino de bronze a ser feito na metalúrgica da sua cidade, mas que nunca saiu do papel. Ficou a lembrança da torre agora que a igreja teve o terreno desapropriado pela prefeitura necessitada de alargar a estrada. Logo a igreja vira apenas o fantasma das fotografias, que vão desbotando, desbotando... Como aquela do casamento dos pais, em preto e branco, o pai de terno europeu, a mãe de noiva, clássica, vestido branco, sorriso enorme. Calor de rachar os cornos e estava lá o seu velho, então moço, suando sob o terno europeu. E a rosa nas mãos da mãe, da noiva, murcha de dar dó. Mas falava-se da sina, de se fugir da sina. Ah, pois, mas há a dor no peito e a amiga ao volante. Quando começara aquela amizade? Como unha e carne escreveria um escritor medíocre, tanto quanto este que agora escreve, amizade de unha e carne, está aí, não tiro a palavra e a mediocridade. Outrora tão bonita, agora, apenas “experiente”. Pena terem se conhecido tão tarde. Como unha e carne. Não confessa, mas também já a desejou, como fêmea, também já a desejou. Mas à Carícia, a esta, roubou apenas um beijo, coisa de filme antigo, de mulher pré-maio de 68, enfim, de mulher recatada que se masturbava sob os cobertores. Roubou o beijo e ela correu, melhor dizendo, andou depressa, fugiu para casa. E o taxista disfarçando o sorriso sob o bigode. Depois mandou mensagem eletrônica, de chegada imediata, nada de cartas, de correio. Seus pais se conheceram por carta, namoraram por carta, e o velho, decidido, um dia veio, abandonou seu luso chão e veio. Ficou. Mas dizíamos, mandou “e-mail” pedindo desculpas. Vejam só, pediu desculpas! E Carícia eletronicamente respondeu que ele não tinha do que se desculpar. “Ela gostou, e quer” – conclui, os dedos embargados de emoção não digitaram mais nada. Agora a Lua, o mar, o vento frio, a dor no peito.

“Ela se vai! Eu sei, e sei também que direi: ‘vai’. Não prendo, não posso prender. Coisa brega, mas a sentença é verdadeira, ‘quem ama liberta’, se prende, não ama. Pode ser desejo, pode ser paixão, mas é posse tão somente. Não é amor. Coisa ridícula o amor, Romeu e Julieta coisa e tal...”

“Ela vai, mas volta” – sentenciou a amiga, experiente, conhecedora da alma feminina.

Errou! A amiga errou, mas isso foi depois, conto mais tarde ou nem conto, vamos ver. Mas o fato é que ele sabia que a amiga estava errada. Carícia iria embora, ele sabia, como também sabia que não se jogaria aos seus pés, não cometeria atos de loucura, não cortaria os pulsos nem tampouco apelaria para a chantagem. Ao perceber o momento, o desejo de ir nos olhos verdes de Carícia, diria: “vai”. Não seria a primeira vez a fazê-lo, muito provavelmente não seria a última. Tem essa mania de colher melancolia, de cultivar jardins de dor. Mas não sejamos piegas. Afinal, talvez seja tão simplesmente covardia. O medo de disputar e sair derrotado. Mas enfim, agora já é tergiversação, voltemos, voltemos. Carícia, a Lua, o mar – ô saco! A noite tão bonita e a estrada sempre tão igual. Faróis e faixas, faróis e faixas. Quando chega em casa? Quer dormir, dormindo passa a dor, todas as dores, e a possui, novamente e sempre, em sonho, possui seu corpo, possui sua língua, suas coxas brancas, seus seios róseos e pequenos, que lhe cabem na boca, que lhe cabem na palma das mãos. E sua orelha, ô meu deus, a orelha! Tão bonita, tão vúlvea orelha! Boceta ou vagina? Aquela, tão vulgar; esta, tão asséptica. Um slide: o apartamento da amiga, desta que agora dirige, o quarto, a pequena cama, a montanha de caixas de papelão recobrindo as paredes, e Carícia sobre os cobertores, a entrega, o “posso?”, o “pode!”, e os botões que abandonam suas casas, a lingerie preta, a calma escondendo a ansiedade e a respiração tensa. Fazia frio naquele mês de julho. Ô frio úmido desta cidade! Tão cansado agora, tão cansado... E a dúvida ao chegar em casa, olhar o telefone, deveria ligar? Talvez ligue ela, afinal, tem a voz tão bonita, ele, e ela ligaria para massagear os ouvidos com sua voz de veludo, de volúpia, as coisas que sussurra aos seus ouvidos, o sorriso do outro lado da linha, o suspiro. “Vou até aí! Posso?” – acaba dizendo. “Pode!” – ah, claro que pode, é tudo o que deseja, tê-la junto de si, morder-lhe os lábios, sentir-lhe as mãos, as pernas enroscadas em seu corpo, estar nela, dentro dela, sobre ela, abaixo dela. Tudo sempre possível, tudo sempre permissível. Aprendizagem. E depois, sabe, ele dirá: “vai”. E ela irá, como chega, de súbito, na madrugada, no meio da tarde. E não voltará mais, não voltará. Como tantas não mais voltaram, cicatrizes profundas, memória de carne.

Os olhos tão distantes, o mar se escondeu na última curva, o rumo do vale...

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