O Piromaníaco

Esta me foi contada, e a pessoa jura por Deus, apesar de se confessar atéia, que aconteceu mesmo!

O fato se deu lá pelos meados da década de setenta numa cidade do leste catarinense. As ruas ainda não conheciam o asfalto, quando muito o liso paralelepípedo que em dias de chuva fazia a festa dos ortopedistas, e de violência só se sabia daquelas que se perpetravam na calma do lar, do marido bêbado contra a esposa subserviente. A cidade se orgulhava de ostentar o título de "Vale Europeu", e bradava aos quatro cantos que saíra publicada nas páginas das "Seleções", aquela revistinha que moldava nossos padrões à luz do refugo yankee. Matéria paga, certamente, mas suficiente para fazer morrer de insana inveja os municípios vizinhos.

Pois bem, foi neste cenário quase que bucólico, de pudicícia até, cujas cozinhas recendiam a pão caseiro assado no forno à lenha, que o aqui narrado aconteceu.

Os dois jovens eram primos de sangue e, desocupados como eram, viviam a azucrinar a vida dos pacatos moradores com suas tiradas surreais (ou seriam criminosas?). Era muito comum vê-los caminhando nas tardes de domingo pelas praças desertas com aquele sorriso sádico de quem andou a aprontar alguma, ou confabulando nas esquinas com seus bichinhos de estimação amarrados à corrente (a cobra Jurema, um galho arrancado de um pobre Ipê, e Rodolfo, o sapo que morrera afogado, segundo a versão do criador). Durante a semana eram vistos separados, falando sozinhos, vestindo shorts no inverno e pesados palas no verão. Enfim, era impossível não percebê-los, não ouvi-los e não se irritar com os únicos desajustados que o poder local permitia andar em liberdade. Percebam, amigos leitores, que isto conto de ter ouvido, e não de ter vivido, pois nem projetado ainda fora, e se me perguntam "é verdade?", respondo que não boto a mão no fogo por ninguém.

Mas para encurtar um pouco a história, vou chamar a atenção para o fato de que um deles morava no centro da cidade, ao lado de uma igreja evangélica, cujos cantos e preces nas manhãs de sábado atrapalhavam o seu santo sono. Particularmente, nada tenho contra os cantos e preces, mas ele tinha, e sua raiva aumentava a cada sábado. Cada vez que ele saía para a estrada e obrigatoriamente passava diante do humilde templo, lançava-lhe um olhar criminoso que prometia alguma coisa. Muitas vezes o olhar se transformava em gestos obscenos ou até mesmo em palavrões que aprendera com seu primo, mas não passavam disso, isto é, até aquele dia.

Incomodado com as vespas que lhe invadiam o quarto, o famigerado saiu a procura do ninho com o intuito de queimá-lo, e qual não é a sua surpresa quando o encontra sob o forro da igreja vizinha. Desnecessário dizer que um brilho estranho tomou conta dos seus olhos quando percebeu que o vespeiro lá estava sob os auspícios da Providência Divina, e que concretizavam-se as possibilidades de vingança contra o seu despertador sabatinal.

Muito calmamente foi até ao bambuzal que havia atrás da sua casa, e de lá trouxe um bambu (porque outra coisa não poderia ser) com quase dois metros de comprimento, que lhe serviria como tocha ou algo do gênero. Muito tranqüilamente, embebeu um pano em álcool e o amarrou a uma das extremidades do dito cujo. Não preciso repetir que seus olhos lançavam ao longe fagulhas de emoção. Com um fósforo, acendeu a tocha, e pôs-se a queimar o vespeiro, quase tendo um orgasmo ao imaginar o desespero dos insetos que tinham seus domínios invadidos pelas labaredas. Digo quase, porque o orgasmo mesmo viria no ato seguinte. A igreja possuía ventarolas nas janelas, e a fim de permitir a circulação de ar, as ventarolas permaneciam abertas. O famigerado, ao perceber as pesadas cortinas vermelhas por detrás das ventarolas, direcionou para lá o bambu, ateando fogo às cortinas. Pronto, agora podia gozar!

Naturalmente a intenção do piromaníaco não era atear fogo à igreja, afinal, não era tão mau assim, e quando ele viu que o fogo aumentava e que se alastrava por todas as cortinas que, diga-se de passagem, cobriam todas as paredes internas do templo, ele ficou realmente preocupado, e correu ao orelhão mais próximo para chamar os bombeiros. Nisto uma pequena multidão de desocupados já se reunia na rua para assistir ao espetáculo, e surgiam as primeiras explicações para o sinistro: "só pode ter sido um curto circuito!", dizia um; "não, eu vi, foi a vela que esqueceram acesa!", categoricamente afirmava uma senhora com "bobs" enrolados nos cabelos.

Alguns poucos minutos depois chegavam os caminhões vermelhos do Corpo de Bombeiros com as estridentes sirenes ligadas, fazendo o maior estardalhaço e acompanhados de uma multidão ainda maior de curiosos ávidos por tragédias. Tão logo chegam, os soldados virilmente saltam dos caminhões, quebram os vitrais com seus machados, invadem a casa santa com suas pesadas mangueiras, suas botas, seus extintores. Delírio na platéia, êxtase total para o nosso jovem, que a esta altura em nada perdia para um vândalo profissional. O êxtase era tanto, que quase chegou a sentir pena quando viu a desolação estampada no rosto do pastor Quando este chegou ao local.

Bem, a fim de chegar logo ao desfecho, porque já em muito estou inventando, contou-me a tal pessoa que no sábado que se sucedeu ao incêndio, o pastor reuniu seus fiéis naquele templo semidestruído para um culto de agradecimento, já que a casa do Senhor havia resistido à provação do incêndio graças ao providencial telefonema dado por nosso jovem cara-de-pau, "que fora enviado pela mão bondosa de Deus!", segundo as palavras do ministro. De tudo participava o cínico jovem, que em meio aos destroços dos móveis e à fuligem de fumaça que permanecera na parede, recebia os olhares de aprovação dos fiéis e as piscadelas de promessa das ninfetinhas, loucas para honrar ainda mais o nosso hipócrita herói.

O primo, que de tudo sabia, porque ao outro bem conhecia, limitou-se a morrer de inveja e, no seu íntimo, pensou em feito ainda maior. Mas aí já não falo nada, afinal, termina aqui o que me contaram, e se mais houver, que se procure nas páginas policiais dos jornais da cidade.

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