O Beijo - Parte II

        A mulher se arrumava calmamente. Apertou os cordões atrás do espartilho, bateu a poeira das botas que usava, jogou a cabeça para trás e sacudiu os longos cabelos negros como as asas de um corvo. Seus olhos estavam em paz, olhando para fora da janela gradeada. Quem a visse assim, nunca imaginaria que estivesse a poucos minutos de ser enforcada. A sua prisão era improvisada. Ficava em baixo da sacristia. Um lugar bem parecido com uma masmorra, mas não tão ameaçador. A janela pela qual olhava ficava rente ao chão do lado de fora. Não podia deixar de ter pensamentos perversos sobre os motivos que levaram o padre a ter aquele lugar mantido ali.
      Ouviu a porta do andar de cima ranger e depois passos na escada. O padre descia com uma bíblia e uma cruz na mão. Um sorriso brincou em seus lábios “será que ele pensa que eu sou um vampiro?”.
      O padre abriu a bíblia e beijou a cruz. Começou com a sua ladainha. A cabeça de Serena fervilhava de ansiedade. Não estava com paciência para aturar aquilo.
      — Hei! – Disse ao sacerdote – Você não quer saber se eu me arrependo de meus pecados antes de começar a encomendar minha alma?
      O padre a olhou, incrédulo, por cima dos óculos:
      — E você se arrepende?
      — HÁ! – Serena soltou uma sonora risada – Claro que não! – Se apoiou na grade para se aproximar do padre. – Então, acho que você está perdendo o seu tempo, não está? Não use o nome do seu Senhor em vão. Foi Ele mesmo que disse.
      O padre fechou a bíblia com um estalo. Tirou os óculos com raiva.
      — O que você pensa que está fazendo? Por acaso tem idéia do que está para acontecer? – O padre gritou agitando a bíblia.
      — Sim. – Serena disse com toda a calma – Por isso estou tentando fazer com que nenhum de nós perca seu precioso tempo. – E deu uma piscadela para o padre.
      O velho religioso respirou fundo, tentando não perder mais a calma. Olhou para o chão procurando alguma coisa. Jogada perto da parede estava uma corda já gasta pelo tempo. Colocou a bíblia em um bolso da batina e deixou a cruz recostada na parede quando se abaixou para pegar a corda.
      — Vire-se de costas. – disse o sacerdote.
      Ela se virou e sentiu as cordas sendo amarradas firmemente ao seu pulso. Estava a minutos de ser enforcada, mas não poderia deixar de perturbá-lo:
      — Hmmm... Padre... – usou a sua voz mais sensual - achei que você tivesse feito voto de castidade.
      Estava de costas e não tinha como vê-lo. Mas de algum modo sabia que com esse comentário, o velho havia corado até a raiz dos cabelos. Ele a guiou até as escadas. Serena subiu lentamente e fez a sua última brincadeira com o padre:
      — Você não credita realmente que eu sou uma bruxa, não é?
      — C - Como? – O padre não se sentiu confortável com essa pergunta. – Por que diz isso?
      Serena sorriu:
      — Se acreditasse... acharia mesmo que essas cordas seriam suficientes para me impedir?
      O padre olhou para as cordas. Tão velhas e gastas. Se realmente fosse uma bruxa ela se soltaria facilmente dali. Mas admitir isso na frente do povo, dizer que estava errado. Nunca. A condenada era uma bruxa, sim. Como diria que seus anos dedicados à fé estavam errados? O padre nunca saberia se estava diante de uma verdadeira bruxa. Nunca saberia se outras que foram condenadas também não eram. Tinha nesse momento o assassinato de muitos inocentes nas suas costas. Esse pensamento o atormentaria para toda a vida. E assim, sem que percebesse, Serena jogou um feitiço nele. O clérigo se culparia pelo resto da vida por ter mandado essa jovem para a forca.
      Quando os dois saíram da sacristia dois jovens a esperavam. Um desses jovens, Serena já conhecia muito bem. Deu um passo a frente em sua direção:
      — Sabia que conseguiria. – Disse bem baixo para que só Lúcio ouvisse.
      O jovem olhou desconfiado para os lados para ter certeza disso.
      — Agora... – continuou ela – o seu prêmio.
      Quase que junto ao fim de sua frase, Serena se atirou sobre ele. Tinham quase a mesma altura e não houve dificuldade para ela alcançar a boca do seu cúmplice. A reação de Lúcio foi a esperada, segurou-a pela cintura retribuindo-lhe o beijo. Um beijo apaixonado de dois amantes em uma despedida. Todos na cidade já estavam reunidos ali, e todos pararam diante daquela cena. O beijo acabou quando Serena descolou seus lábios dos de Lúcio dizendo:
      — Acho que temos algo a fazer agora.
      O jovem ainda estava meio atordoado, sem saber como reagir. Olhava incrédulo para Serena. Deveria escoltá-la até a forca, mas isso não foi preciso. Quando ele conseguiu se mover novamente, saindo do seu estado de estupefação, ela já estava na metade da escada que levava ao patíbulo. Apressou-se para alcançá-la. Ficou ao seu lado no tablado. A jovem estava sobre a marca na madeira que indicava o alçapão. Foi Lúcio quem colocou a corda em seu pescoço enquanto Serena olhava para longe. Seus olhos pareciam não estar mais ali.
      O padre fazia a sua prece em voz alta, fora do cadafalso. Ele perguntou se a condenada queria proferir suas últimas palavras. Nenhuma palavra da parte dela. O velho não pode, ainda, deixar de respirar aliviado. Tinha medo de que a criatura fizesse mais alguma piadinha ou algum comentário como os que fizera na prisão. Diante do silêncio, ele deu por encerrada a cerimônia de execução.
      — Já que não tem nada a dizer, que se cumpra o seu destino. Que Deus tenha piedade de sua alma.
      Lúcio puxou a alavanca que fez o alçapão do tablado cair. O corpo dela despencou. Alguns desviaram os rostos na multidão. Outros aplaudiram. Lúcio apenas a olhou cair. Sentiu um frio na espinha quando seu corpo sumiu de sua vista. Um vazio tomou conta do seu estômago, algo que deveria ser sentido à beira de um penhasco. Sentiu que ali, com um simples movimento de braço, havia selado não só o destino daquela moça, mas o seu próprio. Algo estranho havia acontecido naquele enforcamento. Muito estranho! Quando a corda ficou completamente esticada, antes que o laço lhe quebrasse o pescoço, o corpo dela parecia não ter um sopro de vida pelo que lutar em agonia, como se ele houvesse pendurado ali uma pessoa já morta.

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