O Beijo - Final


        Naquela noite, Lúcio não conseguiu dormir. Revirou-se no leito por algumas horas. O sono não vinha. Por volta de meia noite, resolveu sair da cama. Abriu a janela do quarto para conseguir se refrescar com algum vento, já que o suor encharcava a sua roupa de dormir. Ao abrir a janela, o brilho fugaz da lua cheia invadiu seu quarto. Não foi o vento, mas a luminosidade que lhe trouxe o alívio de que precisava. Respirou fundo apoiado na janela. Colocou rapidamente uma roupa, pegou seu candeeiro e saiu pela rua.
      Tudo estava muito escuro e o candeeiro não fornecia a claridade suficiente para andar com segurança. Mas a lua era tudo de que precisava. Sua cabeça fervilhava com os acontecimentos do dia que se passou. Naquela manhã havia puxado a alavanca que enforcou Serena, retirado seu corpo sem vida da corda e, junto com mais dois jovens do vilarejo, a levou para uma clareira no meio da floresta. Cavaram um buraco na terra fofa e a deixaram lá. Para que, segundo suas próprias palavras, os demônios a levassem para longe da vila. Agora imaginava se não era essa a vontade dela, quando o aprisionou em seu sonho e o torturou. Será que a desculpa que deu para a população não acabaria sendo a verdade?
      Lúcio andava a esmo sem saber para onde ia. Mas seus passos decididos, e ao mesmo tempo cambaleantes, faziam parecer que sabia exatamente seu destino. Apertava os olhos tentando se acostumar a pouca luz. Fazendo isso pode reconhecer a certa distância uma cabana mal cuidada. Lembrou-se de quando voltaram da floresta. Carregara uma das pás que usou para enterrar Serena. Lembrava de tê-la jogado de lado no chão assim que passou pela cabana. Enquanto andava em direção ao casebre decrépito, tentou divisar no chão o formato da pá. Teve que andar curvado, aproximando o candeeiro da relva espessa, para conseguir encontrá-la. Pegou-a com naturalidade e a apoiou no ombro.
      Logo atrás da cabana, começava a floresta. E foi ali que ele entrou.
      A luz da lua era filtrada pelas copas das árvores. Ele podia ver apenas alguns pontos iluminados nos troncos e no chão. Esses pontos não ajudavam em nada a desviar das raízes das árvores e de galhos caídos. Usava a pá como uma bengala para ajudar a andar. Mesmo assim tropeçava com freqüência. Chocava-se com os ombros nos troncos das árvores. Largou a pá algumas vezes para aparar a queda com as mãos. Isso lhe causou alguns arranhões e hematomas pelo corpo.
      Os sons da floresta entravam em sua cabeça com força. Era como se cada pequeno ruído viesse de todos os lados possíveis. O rastejar das criaturas passando por ele não faziam com que ele parasse. O bater de asas de alguma ave, ou talvez um morcego, passou rente ao topo de sua cabeça. Ouviu um resmonear animalesco, suave, vindo de longe. Pelo som, não conseguiu precisar o tamanho do animal. Poderia ser desde um pequeno mamífero inofensivo até... Nem queria pensar.
      Mas isso não importava.
      Seguiu com a determinação de um desbravador por aquela floresta. Nada era capaz de impedi-lo. Mas de onde vinha aquela força? O que fazia com que continuasse sem nem bem saber por onde andava? Sentia que uma força o guiava. Sim! Disto tinha certeza! Uma força maior que ele, que estava além de qualquer explicação. Tinha alguma idéia de onde ia. Mas não era devido a nenhuma razão que lhe fosse compreensível. Apenas uma sensação de que nada poderia fazer ali, a não ser...
      De repente algo em meio às árvores lhe chamou atenção. Uma claridade estranha em meio a tanta escuridão. Tomou direção, sedento, rumo àquele local que espargia ramificações tênues de luz. Parecia satisfeito em vê-lo, como se o tivesse esperando desde o momento em que pôs os pés fora dos limites da vila. Afastou uma cortina fina de galhos e folhas com a pá. E pode ver o que era aquela luz mortiça dentro da noite. Era uma grande clareira, que formava quase que um círculo perfeito circundado pelas árvores. Se alguém perguntasse, poderia dizer que, além de tudo, o brilho lunar parecia mais intenso ali. Colocou o candeeiro, que surpreendentemente ainda estava aceso depois de tantas dificuldades na floresta, no chão. Foi até o meio da clareira, aonde um monte de terra se diferenciava de todo o resto do terreno. É claro que sim, aquela terra fora revirada mais cedo. Um corpo fora enterrado ali. E ali ainda permanecia. Sem pensar muito no que pretendia fazer, porque para ele era muito óbvio, Lúcio fincou a pá na terra, tirou o primeiro punhado e o atirou para trás.
      Praticamente não piscava enquanto fazia o seu trabalho. Apenas olhava fixamente para o barro revolvido concentrando-se em cada monte de terra que jogava para trás. De repente algo o fez diminuir a velocidade em que estava cavando. Retirou punhados menores de terra, com mais cuidado do que antes. Decidiu, naquele momento, que o uso da pá não era mais necessário e pulou dentro do buraco. Ajoelhou-se no chão e começou a afastar a terra com as mãos. Logo ele encontrou uma ponta de tecido preto sabendo o quanto faltava para desenterrá-la. Trabalhou mais rápido com as mãos até que conseguiu afastar terra o suficiente para erguê-la do chão. Colocou os dois braços por debaixo do corpo e a pegou no colo. Colocou-a na beira da cova e saiu pelo outro lado. Deu a volta e a ergueu novamente. Olhou em volta descobrindo um monte de folhas secas caídas, das quais foi de encontro e a acomodou naquela cama improvisada.
      Lúcio a olhava incrédulo! Havia feito todo aquele caminho, tido todo aquele trabalho quase que inconscientemente. Não pensou nem por um momento no que estava fazendo, em qual era a finalidade daquilo tudo. E se desesperava porque continuava sem saber. Sufocou os gritos, nos recônditos mais profundos de sua mente, que pediam por um pouco de lucidez e se deixou levar por aquele instinto que o conduzira até onde estava. Ajoelhou-se e desenrolou o tecido que a envolvia. Lá estava Serena, mais branca do que nunca, apresentando na alvura da pele um contraste violento com o preto de seus cabelos. Um detalhe avultava-se em seus traços fisionômicos! Lúcio não tivera oportunidade de ver muitos cadáveres em sua vida, mas desconfiava de que os lábios dela deveriam estar roxos, o que não acontecia. Estavam vermelhos, cheios, viçosos, como se ela tivesse acabado de cobri-los com batom. Ela era uma moça bonita, mas algo mais aconteceu quando ela morreu. Serena parecia irresistível, seus lábios convidativos estavam entreabertos, deixando entrever um pedaço bem pequeno de seus dentes muito brancos.
      Lúcio susteve a respiração diante da visão dela. Ela estava estonteante. Duas coisas passaram pela cabeça dele nesse momento. Uma delas era uma sensação de que viera até ali para devolver alguma coisa. A outra era uma vontade incontrolável de beijá-la. Não sabia ao que se devia o primeiro. Mas não resistiu ao segundo.
      Primeiro levemente. Depois pressionou mais os lábios contra os dela. Percebeu algo que não deveria estar acontecendo, primeiro ignorou a sensação... Mas depois não pode deixar de notar: Os lábios se moviam sob os seus. Abriu os olhos e se afastou sobressaltado. Os olhos dela estavam abertos fitando o céu acima da clareira. Não havia expressão neles. Eram os mesmos olhos sem vida que subiram à forca. E mais uma vez ele sentiu o mesmo impulso de beijá-la. Curvou-se novamente, e agora, a resposta dela era mais evidente. Ele podia senti-la retribuindo o beijo. Sentia o movimento dos lábios dela muito melhor agora. Ouviu um murmúrio, como se desejasse falar alguma coisa. Afastou-se por um momento:
      — Disse alguma coisa?- Perguntou ele imaginando o quão surreal era perguntar isso a uma pessoa que estava morta há apenas alguns segundos.
       — Mais... – Respondeu ela. Sua voz era pouco mais do que um sussurro deixando transparecer uma fraqueza contrária ao seu próximo movimento.
      Serena mais do que rapidamente, ergueu as mãos e segurou o rosto dele contra o dela. O beijava com fúria e violência. Lúcio não tentou se soltar e aproveitava cada momento daquele beijo doce. Até que reparou uma coisa, um pouco tarde demais: Ele estava ficando sem ar. Tentou empurrá-la gentilmente, mas ela não cedeu um milímetro se quer. Ele imprimiu mais força da vez seguinte, também sem sucesso. Serena parecia ter voltado dos mortos com uma força descomunal. Cada segundo que passavam com os lábios colados era um martírio. Sentiu todo o ar sendo sugado se seus pulmões. A mulher antes morta continuava deitada segurando o rosto dele colado ao seu com naturalidade, enquanto ele tentava desvencilhar-se do aperto dela.
      Aos poucos Lúcio foi perdendo as forças e lutando menos contra ela. Ainda apertava as mãos dela tentando tirá-las quando ela finalmente o soltou. Ele rolou para o lado ainda fraco. Apesar de estar livre, ainda não conseguia puxar o ar de volta para seus pulmões. Ficou se contorcendo no chão com as mãos agarradas ao pescoço como se aquilo fosse fazê-lo voltar a respirar. Suas unhas deixavam marcas vermelhas em sua pele na sua agonia por um suspiro.
      Serena se sentou onde estava. Olhapu em volta piscando, tentando acostumar os olhos a luz depois de tantas horas na mais absoluta escuridão. Um leve sorriso começou a se formar em seus lábios quando sentiu um toque em seu braço. Olhou para o lado e viu Lúcio. Suas mãos crispadas tentavam alcança-la. Seus olhos injetados de sangue devido a alguns vasos rompidos suplicavam por ar.
       — Me desculpe. – Disse Serena tranqüila – Eu havia me esquecido de você.
       Ela se levantou e andou em direção aos pés dele. Pegou os dois e começou a puxá-lo para a beira da cova ainda aberta. Serena parecia não fazer muito esforço para isso. E começou a falar com ele:
       — Sabe, eu tenho que agradecer a você por guardar minha respiração para mim. – Disse em um tom de conversa normal. - Foi por isso aquele beijo antes da forca. Sinto muito se eu te fiz pensar que eu queria algo mais com você. – sufocou um riso baixo – Mas você sabe, nós não tínhamos futuro. Afinal, eu morri alguns segundos depois, certo? Claro que você sabe. Foi você quem me matou não foi? – O puxava devagar para ter tempo de falar tudo que precisava para ele. – Mas enfim, como eu havia morrido, eu precisava de um empurrãozinho para voltar a respirar... Então, peguei a sua capacidade de respiração também. Espero que isso não seja um problema.
       Lúcio agarrava o pescoço com uma das mãos, e com a outra ele tentava se segurar a terra para não ser arrastado. Mas isso não mudava em nada o seu destino.
       — Aposto que quer saber por que ainda não morreu não é? Bem, eu vou te contar. Para voltar à vida, eu não precisava de toda a sua respiração. Então eu deixei você com um pouquinho dela. Isso vai matar você? É claro que vai! Só que bem mais lentamente.
       Ela chegou a beirada da cova e soltou os pés dele no chão. Suas pernas se contorciam tentando fugir, mas de pouco lhe valia o esforço. Serena se abaixou ao seu lado e se aproximou de seu ouvido. Disse em pouco mais que um sussurro:
       — Aposto que foi uma agonia guardar isso para mim, não foi? Tanto que você mal pode dormir essa noite. Bem...
       Ela se levantou e o empurrou para a cova com a ponta da bota que usava. Ele caiu de barriga para cima. Seus olhos piscavam com força. Chutou um pequeno punhado de terra para dentro da cova.
       — Bons sonhos. – Piscou um dos olhos, soprou-lhe um beijo e afastou-se deixando-o a sua própria sorte.
      Da parte de Lúcio, a proximidade da morte não era exatamente o que lhe preocupava naquele momento, mas, sim, o quanto o fim derradeiro demoraria a chegar.
      Serena saiu andando tranquilamente para o seu novo destino, em direção oposta a do vilarejo de onde viera. Entrou na floresta com o alívio de um viajante que volta para casa. Sentiu o perfume das folhas e da noite, deixando para trás os moradores de uma vila que a viram morta, apartando-se de uma clareira cheia apenas dos últimos suspiros de um homem... mas que logo estaria vazia novamente, submissa a luz mortiça da lua daquela noite inesquecível.

Comentários

Nicole disse…
ADOREI! Gostei muito da história, confesso que no inicio achei que a Serena estava apaixonada pelo Lucio... Bem interessante, continue assim, man!

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