O Beijo - Parte I

       — Ela não deve permanecer aqui! – Ele repetiu a frase mais uma vez.
       — Você se refere a um enterro cristão? – O padre perguntou incrédulo.
      — Não! Eu digo na floresta ao norte da cidade.
      Um silêncio reinou na sala onde se reunia quase todos os aldeões da comunidade. A pauta da vez: Um jovem, Lúcio, queria impedir que uma jovem, Serena, fosse queimada sob a acusação de bruxaria. Não que ele quisesse que ela fosse poupada. Sua idéia era de que a moça fosse enforcada e enterrada, longe da vila, mais precisamente dentro da densa floresta que cercava três quartos do lugar. Tudo aconteceria no dia seguinte e as coisas estavam longe de acabar.
      Lúcio tentou convencer a todos de todas as maneiras:
      — Se nós a queimarmos, suas cinzas continuaram aqui. – disse ele.
      — E que mal as cinzas de uma bruxa morta fariam a nós? – Gritou uma senhora na última fileira. Um murmúrio geral deu mostras de concordância.
      Lúcio abaixou a cabeça. Não queria dizer a verdade. Não queria admitir que todo o trabalho que estava tendo era por culpa dos sonhos que tivera. Naquela noite não conseguira dormir. Sonhos diversos, em que Serena falava com ele e dizia-lhe que ela não poderia ser queimada. A jovem o torturava asseverando-lhe que se fosse queimada, todos na cidade sofreriam mais do que ele estava sofrendo naquele momento. Lúcio sabia o tempo todo que se tratava de um sonho, mas não conseguia acordar. Serena afirmara que ele acordaria quando ela quisesse ou poderia muito bem não acordar. Era ele quem escolhia. No sonho ele tinha cordas que amarravam seus pulsos e quando acordou naquela manhã as marcas das cordas ainda estavam lá, vermelhas e a pele esfolada como se estivesse amarrado por um longo tempo. Havia sinais de queimaduras em sua barriga e longos lanhos de chicotadas em suas costas. Pelo seu próprio bem, deveria convencê-los de que a suposta feiticeira não poderia ser queimada. Não sabia se conseguiria mentir na frente de toda a cidade... Mas podia disfarçar a verdade.
      — Eu tive um sonho. Uma visão. – Disse o jovem finalmente.
      Todos ali se manifestaram ao mesmo tempo. O Padre tentava acalmar os ânimos.
      — Esperem, esperem. – interrompeu o sacerdote muito curioso. – Vamos ouvir o que o jovem Lúcio tem a dizer sobre isso.
      Lúcio limpou a garganta e começou a disfarçar a verdade.
      — Ontem à noite eu tive um sonho. Nele um anjo falava comigo. Dizia que não queria ver uma comunidade de fiéis tão devotados cometerem um erro tão grande. - Lúcio tentava parecer tomado de uma grande emoção devido à revelação - Disse que se a queimássemos as suas cinzas permaneceriam em nosso solo. E essas cinzas impuras trariam o mal para nós. Este mensageiro celestial afirmou que a única maneira de tirá-la daqui seria enforcando-a. Devolvendo seu corpo inteiro para a floresta, onde os demônios a levarão para as trevas de onde veio.
      O silêncio reinou naquele lugar. Todos se olhavam espantados. Ninguém conseguia acreditar no que tinha ouvido. Todos comentavam baixo entre si.
      O padre foi o primeiro a se pronunciar:
      — Bem, irmãos... - Tirou os óculos e limpou-os na batina. – O que nós ouvimos aqui é uma experiência única. Podemos nos considerar um povo abençoado por Deus. Se o Nosso Senhor se deu ao trabalho de mandar um de seus anjos nos avisar do mal que essa mulher nos causará, nós somos realmente um povo do qual Ele se agrada. 
      O sacerdote juntou as mãos em frente ao corpo.
      — Irmão Lúcio, aproxime-se.
      Lúcio andou até o clérigo e se postou ao seu lado. Agora se referindo a toda a congregação o sacerdote disse:
      — Irmãos! Oremos! Vamos agradecer por essa graça!
      O padre conduziu a oração em altos brados. Lúcio, que estava ao seu lado de cabeça baixa e com as mãos entrelaçadas na altura da barriga, teve que conter o seu espanto quando viu que as marcas de cordas já não estavam nos seus pulsos. Tentou se mexer sem que ninguém reparasse. Percebeu que a dor das chicotadas nas costas havia sumido. Em meio às palavras empolgadas do padre, Lúcio pode ouvir uma risada que reconhecia muito bem. Era Serena! Pela falta de reação dos outros, só ele mesmo ouviu aquilo. Aquela risada esganiçada que lhe causava um frio na espinha. A risada cessou de repente, assim como surgiu. Quando o jovem achou que podia respirar aliviado, ouviu um sussurro, como se a bela feiticeira de seus sonhos estivesse de pé ao seu lado, com os lábios colados ao seu ouvido. O sussurro dizia:
      — Muito bem...

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